sábado, 4 de abril de 2020

SUBSTITUIÇÃO TRIBUTÁRIA DO ICMS E AS IRREGULARIDADES LATENTES NA COBRANÇA DA DIFERENÇA ENTRE O VALOR PAGO ANTECIPADAMENTE E A OPERAÇÃO PRATICADA

A Constituição Federal hoje em vigor autoriza a sistemática da substituição tributária, nos termos previstos no § 7º do artigo 150, onde prevê a possibilidade de a lei atribuir a sujeito passivo de obrigação tributária a condição de responsável pelo pagamento de imposto ou contribuição, cujo fato gerador deva ocorrer posteriormente, assegurada a restituição da quantia paga caso não se realize o fato gerador.

Quando fora implementada, no entanto, surgiram discussões acerca da sua manutenção viável no sistema jurídico ou não, sobretudo por ter sido criada sob um único pretexto, facilitar a arrecadação tributária pelo Fisco Estadual.

No entanto, o Supremo Tribunal Federal julgou constitucional a sistemática da substituição tributária para frente, firmando o entendimento de que o fato gerador do ICMS-ST ocorria de forma definitiva com a realização da operação comercial pelo substituto tributário, na ADI 1851, na relatoria do Ministro Ilmar Galvão, julgado em 08/05/2002.

Então, debruçando-se ainda mais sobre o assunto, o contribuinte passou a questionar o alcance da expressão “caso não se realize o fato gerador presumido”, prevista no § 7º do artigo 150 do Texto Constitucional, defendendo que a venda a consumidor final realizada por valor inferior ao preço presumido para o cálculo do ICMS-ST equivaleria a não realização do fato gerador presumido.

O Supremo Tribunal Federal reconheceu a Repercussão Geral da matéria sob o Tema nº. 201, e acabou por revisar o seu entendimento anterior, entendendo “devida a restituição da diferença do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços – ICMS pago a mais no regime de substituição tributária para frente se a base de cálculo efetiva da operação for inferior à presumida”.

Ainda que nítido e claro o posicionamento do STF, o Estado tentou revertê-lo a seu favor para abarcar as hipóteses inversas, ou seja, pela via recursal inapropriada dos embargos de declaração, pretendeu reconhecimento de que, quando a operação ocorresse à base maior, teria também o direito de cobrar a diferença, então, novamente, o Supremo veio à pauta e ratificou seu posicionamento, no RE 593849: “Não há omissão na súmula da decisão, por não abarcar os casos em que a base presumida é menor do que a base real, porquanto se trata de inovação processual posterior ao julgamento, não requerida ou aventada no curso do processo. De todo modo, a atividade da Administração Tributária é plenamente vinculada ao arcabouço legal, independentemente de autorização ou explicitação interpretativa do Poder Judiciário, nos termos do art. 3º do CTN.”

As definições havidas pelo STF se revestem de exponencial importância, eis que reconhecem a constitucionalidade da sistemática da substituição tributária para frente e o direito dos contribuintes à restituição da diferença do ICMS-ST pago a mais sempre que a base de cálculo efetiva da operação for inferior à presumida. Repita-se, apenas quando a base for inferior à presumida, foi isto que o Supremo afirmou!

Ocorre que, após a publicação deste o acórdão, o Estado do Rio Grande do Sul, persistindo no mesmo erro, institui novas normas através da Lei nº 15.056/2017, a qual, a pretexto de dar cumprimento à decisão da Suprema Corte, autorizou a criação de um sistema para o ressarcimento do ICMS nas hipóteses em que o preço praticado na operação à consumidor final seja inferior à base de cálculo utilizada para o cálculo do débito de responsabilidade por substituição tributária.

Contudo, além de estabelecer tal sistemática, o Estado, transbordando dos limites previstos na Constituição Federal, na Lei Kandir e no próprio acórdão do Tema 201 do STF, autorizou a criação de hipótese inversa na cobrança de ICMS complementar, ou seja, naquelas em que o preço praticado na operação a consumidor final seja superior à base de cálculo utilizada para o cálculo do débito de responsabilidade por substituição tributária.

Ato contínuo, no ano de 2018, foi editado o Decreto nº. 54.308/2018 (06/11/2018), impondo ao contribuinte o “ajuste” do ICMS nos casos de substituição tributária, determinando que faça uma apuração mensal em separado das operações com mercadorias sujeitas ao ICMS-ST, comparando o valor da base de cálculo presumida e o valor de venda, para proceder ao recolhimento do imposto complementar ou compensar o crédito decorrente desta apuração.

Por fim, visando operacionalizar as novas hipóteses criadas, em 13/11/2018, foi publicada a Instrução Normativa nº 48/2018, com uma série de novas obrigações acessórias com vistas a viabilizar a fiscalização desta nova apuração paralela das operações realizadas com mercadorias sujeitas à substituição tributária.

Ocorre que essa sistemática de ajuste do ICMS-ST não tem amparo em fundamento constitucional e legal, eis que não há previsão no texto constitucional, nem mesmo na Lei Complementar nº 87/96, para a cobrança de ICMS complementar nas hipóteses em que o preço praticado na operação a consumidor final seja superior à base de cálculo utilizada para o cálculo do débito de responsabilidade por substituição tributária.

Depois, nitidamente, o STF não se referiu às hipóteses em que a operação real é superior à presumida na sistemática de substituição tributária, quando determinou que o ICMS recolhido a maior fosse restituído ao contribuinte.

É latente, portanto, o direito líquido e certo que alberga o contribuinte, podendo socorrer-se do Poder Judiciário com o fim de barrar a imposição de cobrança a maior de ICMS complementar, na via da substituição tributária, oriunda da diferença da base de cálculo presumida, para recolhimento deste imposto na etapa de compra da mercadoria e o efetivo/real preço de revenda praticado, bem como a restituição dos valores pagos indevidamente neste sentido, tudo com base, sobretudo, na decisão do Supremo Tribunal Federal no Recurso Extraordinário n. 593.849/MG.

Ademais, de quem o Estado pretende cobrar esta diferença?
Do substituído, é ele quem vai ter que declarar as bases de apuração MVA e da operação real e recolher esta diferença, mas como, se sequer participou da relação tributária!?
Quem recolheu o ICMS-ST foi o substituto, que é o único sujeito passivo com o dever legal de recolher o tributo.

O substituído não participa do vínculo jurídico nascido da incidência na modalidade de substituição tributária, cuja obrigação se estabelece exclusivamente entre o Estado e o SUBSTITUTO.
Inclusive, em importante julgamento do STJ no processo - REsp 931.727/RS, onde foi Relator o Ministro LUIZ FUX, PRIMEIRA SEÇÃO, colaciona obra jurídica escrita pelo saudoso tributarista Alfredo Augusto Becker, onde esclarece:

“9. Outrossim, ressalvando-se o entendimento de que a obrigação tributária admite a sua dicotomização em débito (shuld) e responsabilidade (haftung), merece destaque a lição do saudoso tributarista Alfredo Augusto Becker, segundo o qual inexiste relação jurídica entre o substituído e o Estado:
"145. Embriogenia e conceito de substituto legal tributário (...) A fenomenologia jurídica da substituição legal tributária consiste, pois, no seguinte: Existe substituto legal tributário toda a vez em que o legislador escolher para sujeito passivo da relação jurídica tributária um outro qualquer indivíduo, em substituição daquele determinado indivíduo de cuja renda ou capital a hipótese de incidência é fato-signo presuntivo. Em síntese: se em lugar daquele determinado indivíduo (de cuja renda ou capital a hipótese de incidência é signo presuntivo) o legislador escolheu para sujeito passivo da relação jurídica tributária um outro qualquer indivíduo, este outro qualquer indivíduo é o substituto legal tributário.
(...) 149. Natureza da relação jurídica entre substituto e substituído (...) Todo o problema referente à natureza das relações jurídicas entre substituto e substituído resolve-se pelas três conclusões adiante indicadas. O fundamento científico-jurídico sobre o qual estão baseadas as três conclusões foi exposto quando se demonstrou que a valorização dos interesses em conflito e o critério de preferência que inspiraram a solução legislativa (regra jurídica) participam da objetividade da regra jurídica e não podem ser reexaminados, nem suavizados pelo intérprete sob o pretexto de uma melhor adequação à realidade econômico-social.

As três referidas conclusões são as seguintes:
Primeira conclusão: Não existe qualquer relação jurídica entre substituído e o Estado. O substituído não é sujeito passivo da relação jurídica tributária, nem mesmo quando sofre a repercussão jurídica do tributo em virtude do substituto legal tributário exercer o direito de reembolso do tributo ou de sua retenção na fonte.

Segunda conclusão: Em todos os casos de substituição legal tributária, mesmo naqueles em que o substituto tem perante o substituído o direito de reembolso do tributo ou de sua retenção na fonte, o único sujeito passivo da relação jurídica tributária (o único cuja prestação jurídica reveste-se de natureza tributária) é o substituto (nunca o substituído).

Terceira conclusão: O substituído não paga 'tributo' ao substituto. A prestação jurídica do substituído que satisfaz o direito (de reembolso ou de retenção na fonte) do substituto, não é de natureza tributária, mas, sim, de natureza privada.

(...) 150. Inexistência de relação jurídica entre substituído e Estado A inexistência de qualquer relação jurídica entre substituído e Estado é conclusão que decorre facilmente das duas premissas já analisadas. Primeira: embriogenia e conceito do substituto legal tributário. Segunda: natureza da relação jurídica entre substituto e substituído.(...)" (Alfredo Augusto Becker, in "Teoria Geral do Direito Tributário", Ed. Noeses, 4ª ed., 2007, São Paulo, págs. 581/586 e 595/601)”

Assim, o entendimento firmado em Recurso Repetitivo pelo E. STJ é de que o substituto é o único e exclusivo responsável legal pelo recolhimento do ICMS-ST. Ou seja, de fato e de direito, o ICMS-ST é devido e recolhido pelo SUBSTITUTO em nome próprio (embora economicamente em favor de toda a cadeia até o consumidor final).

O contribuinte substituído é excluído da relação obrigacional tributária, na qual normalmente estaria inserido, dando lugar ao contribuinte substituto, que responde, no lugar dele, contribuinte substituído, pela obrigação tributária de calcular e recolher o tributo relativo ao correspondente fato gerador.

Por conseguinte, como pode o Estado pretender cobrar a pretensa diferença de ICMS-ST do substituído, se este sequer participou da relação jurídico-tributária, o adquirente (substituído) não poderá ser incluído, descaracterizando plenamente a substituição tributária.

Então, mais uma vez, é preciso ter reflexão e cuidado acerca das relações que permeiam a convivência entre Estado e contribuinte, entre Estado e cidadão, para que a sociedade possa realmente caminhar para o crescimento de que tanto precisa, não é assim que vai salvar o orçamento público, precisa ter muito mais cautela e sensatez!

Fonte:Por Juliana Sarmento, Coordenadora do Núcleo Contencioso e Consultivo Tributário da Machado Schütz & Heck Advogados Associados.
Publicado em 28/02/2019

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